"O Código de Processo Civil estabelece as regras do "andamento" dos processos judiciais cíveis e é um complexo mecanismo de articulação entre diversas componentes do processo e os intervenientes no processo. Quando se fala na morosidade na justiça é natural que se pense em "melhorar" o Código do Processo Civil já que o mesmo regula (pelo menos teoricamente) o andamento dos processos dentro dos tribunais.
O governo, desta vez, entrou um pouco "ao lado" e optou pela meia da redução das férias judiciais. Claro que o governo tem razão num aspecto: nada obriga a que haja dois meses de férias judiciais de verão, sendo certo que a redução das férias para um mês se vai fixar, na prática e a coberto da lei, numa redução para mês e meio de férias judiciais. Ou, pelo menos sem a marcação de diligências judiciais, exceptuando nos processos urgentes.
Embora tenha parcialmente razão, esta medida emblemática da redução das férias judiciais não vai resolve nada de especial em termos da morosidade.
Mais sério é o anúncio da proposta governamental de alterações ao Código de Processo Civil. Pretende-se, como sempre, combater a morosidade da justiça mas pretende-se também descongestionar os tribunais superiores.
Infelizmente o que é apresentado e está no site do Ministério da Justiça para discussão pública, parece quase só ter uma consequência: afunilar o acesso aos tribunais superiores, descongestionando-os sem nenhumas garantias de melhor Justiça para os cidadãos. Sendo certo que os principais problemas, hoje em dia, não serão a nível dos tribunais superiores mas sim a nível da 1.ª instância.
Claro que as alterações propostas visam aperfeiçoar o sistema e serão bem-intencionadas mas é necessário avaliar aos seus riscos e as suas consequências. Parecem, por exemplo, inequivocamente de aplaudir as alterações que visam acabar com o escândalo dos "processos de incompetência", criados pelos próprios tribunais ao levantarem a questão de não se poderem pronunciar sobre a matéria dos autos por razões processuais. Um sistema célere para resolver esses conflitos entre tribunais parece ser um bom objectivo.
Já as alterações propostas quanto ao regime de recursos levantam questões mais complicadas. Como sempre reduz-se o prazo aos advogados, isto é, às partes, que são sucessivamente penalizadas. Desde logo porque os prazos estabelecidos para os mandatários das partes são rígidos e só pagando um taxa agravada, é admissível a realização do acto nos três dias úteis seguintes ao do fim do prazo.
E não sendo praticado o acto dentro do prazo legal, por exemplo, não tendo entregue a contestação ou o "rol de testemunhas", a parte perde o direito de o fazer, naturalmente com graves consequências para o desfecho do processo. Ora, estes prazos são, na proposta governamental, uma vez mais reduzidos: por um lado, actualmente, primeiro interpõe-se o recurso através de um simples requerimento e só depois de o juiz ter aceite a entrada do recurso, começa a correr o prazo de 30 dias para alegações, isto é, para se apresentarem as razões do recurso.
Pretende, agora, o governo que com a interposição do recurso, a parte recorrente apresente logo as alegações, tal como, por exemplo, no direito processual criminal. A ideia é boa porque evita que o processo com o requerimento de interposição do recurso possa ficar parado meses na mesa de um juiz (ou da secretaria) à espera de um simples despacho de aceitação da entrada do recurso. Mas já parece errada a fixação de um prazo de 20 dias, manifestamente curto, para a interposição do recurso e simultânea apresentação das alegações.
A proposta também reduz os prazos a nível da circulação dos processos entre magistrados para elaboração da decisão do recurso mas como sempre os prazos estabelecidos para as secretarias e para os magistrados. Nenhumas ou quase nenhumas consequências têm. Na verdade, todos estes prazos, nomeadamente o prazo de 30 dias para ser proferida a sentença, são prazos meramente indicativos já que, por exemplo, o magistrado que não proferir a sentença dentro dos 30 dias não será sancionado por isso. Ora, sem se defender qualquer sistema draconiano, parece inequívoco que há necessidade de uma maior responsabilização quanto ao cumprimento dos prazos por parte dos tribunais. Não vale a pena cortar só nos prazos das partes, é necessário, também, exigir o funcionamento do tribunal.
Mas como, é evidente, para se poder exigir que os tribunais cumpram com as exigências legais de tramitação dos processos, nomeadamente quanto aos prazos, também se terão de estabelecer, de alguma forma, "limites" aos processos por cada juiz ou descobrir-se qualquer outra solução. a melhor solução não pode ser só dificultar.
A proposta governamental, no campo do acesso aos tribunais superiores, avança com algumas ideias boas e outras más: parece discutível mas aceitável que só subam ao Supremo Tribunal de Justiça, processos com valor superior a ? 30 000, como se propõe mas já parece muito perigoso, senão mesmo "mortal", a alteração que acaba com o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões da Relação que confirmem a decisão da 1.º instância, independentemente da questão em análise. Esta alteração é de uma enorme gravidade. Muitos advogados já tiveram processos em que, tendo perdido na 1.ª instância e no Tribunal da Relação, vieram a ganhar a causa no Supremo Tribunal de Justiça. E com inteira Justiça!
Recentemente, o Público foi absolvido num processo no Supremo que lhe foi movido por um político, tendo, anteriormente, sido condenado na 1.ª instância e visto a condenação confirmada na Relação. Vale isto por dizer que se estas alterações já estivessem vigor, o processo teria acabado com a condenação no Tribunal da Relação e a liberdade de informação e de expressão teriam sido "desprezadas" e não teriam tido, como tiveram, a possibilidade de renascer no Supremo, à luz da Constituição e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Com esta proposta de alteração, corre-se o risco, como dizem os chineses, " de se estar a roer o próprio pé, para o adaptar ao sapato"...
Francisco Teixeira da Mota no Público de hoje