O crime de abuso de confiança contra a segurança social tem sido um dos temas mais debatidos ultimamente na jurisprudência tributária. Efectivamente a disparidade de decisões, inclusive no mesmo Tribunal e no mesmo dia, relembra-nos o quanto um preceito legal pode dar azo a interpretações distintas.
A principal dúvida assenta em saber se o crime de abuso de confiança contra a segurança social aproveita da descriminalização prevista para o crime de abuso de confiança fiscal, nomeadamente se aproveita do limite mínimo de € 7.500 para que se considere preenchido o tipo legal. Nessa medida, os acórdãos que sustentam a aplicação do limite do artigo 105.º, n.1 do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) ao crime de abuso de confiança contra a segurança social previsto no artigo 107.º do RGIT, baseiam-se principalmente nos seguintes fundamentos:
- O crime contra a segurança social é para todos os efeitos um crime tributário ou fiscal, pelo que em matéria de abuso de confiança o artigo 105.º, contém o tipo legal de referência e o artigo 107.º, contém um tipo dependente, pela particularidade material das condutas que o integram, ou seja, relativas às prestações deduzidas a trabalhadores ou a membros de órgãos sociais;
- O artigo 107.º, n.1, também prevê uma remissão para o artigo 105.º, n.5, onde se estipula o crime de abuso de confiança fiscal qualificado e nessa remissão sempre teve em conta o referencial qualificativo do montante de € 50.000 para o punir mais severamente, pelo que se impõe a identidade de punições nas situações de menor severidade (utilizando para tal também o referencial dos € 7.500).
Contrariamente, os Acórdãos que não defendem a aplicação do novo regime do artigo 105.º, n.1, ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, alicerçam-se nos seguintes argumentos:
- São crimes tributários de natureza diversa e a remissão do artigo 107.º, n.1, para o artigo 105.º, n.1, é expressamente feita apenas para as penas deste;
- O Legislador ao descriminalizar no abuso de confiança fiscal a não entrega da prestação de valor igual ou inferior a € 7.500, sancionou essa conduta com uma contra-ordenação (artigo 114.º, do RGIT), sucede que no caso do abuso de confiança contra a segurança social não existe nenhuma norma contra-ordenacional que preveja o sancionamento desta conduta caso a mesma se considere descriminalizada, o que seria um vazio legal indesejado pelo Legislador.
- Sistematicamente os crimes aqui em causa estão em Capítulos distintos, o que aponta para a autonomia dos tipos, sendo também distintos os bens jurídicos protegidos (nos crimes contra a Administração Fiscal os valores tutelados são os inerentes ao regular funcionamento do sistema fiscal que visa também a diminuição das desigualdades entre os cidadão; diferentemente, nos crimes contra a Segurança Social (SS) o bem jurídico tutelado é o património da Segurança Social, não são assim receitas do Estado, mas da SS destinadas à prossecução dos seus fins específicos, de que não beneficiam sequer todos os cidadãos).
- O fundamento da “unidade do sistema jurídico”, porquanto passaria a existir, um mesmo limite para a fraude e para o abuso de confiança contra a Segurança Social (€ 7500), enquanto no âmbito dos crimes fiscais o limite para a fraude (€ 15000), corresponde ao dobro do estabelecido para o abuso de confiança (€ 7500).
Em resumo são estes os principais argumentos utilizados na defesa das duas correntes jurisprudenciais e que só ficarão resolvidas aquando da emanação de um acórdão de fixação de jurisprudência.
Miguel Primaz
Advogado
Fevereiro, 2010
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